segunda-feira, 20 de abril de 2009

Ricordati di me

Âme Fort de Paulo Martins

Acredito que cada indivíduo é maior do que a soma aritmética das suas múltiplas partes e identidades. Que cada um de nós é mais complexo do que a interacção do seu DNA com as suas experiências de vida. Que cada ser é único e irrepetível, complexo e contraditório, insatisfeito e inquieto, sereno e angustiado, belo e feio, bom e mau, independentemente da vontade e da existência de Deus.

Acredito que a morte é omnipresente e que o sentido da vida é a universalidade da morte. Que todos os percursos têm, consciente ou inconscientemente, esta directiva e que no final todos somos nada, insignificantes e sem importância. Tudo o que fazemos, tudo em que tocamos, tudo o que transformamos, criamos ou destruímos se baseia na negação da morte.

Ser-se racional, realista, pragmático, objectivo, batalhador e, ao mesmo tempo, intensamente emocional, inteligente e sensível é uma equação melindrosa.

Entre o ser hoje o “anjo bom” que tenta, em vão, contrariar a morte inesperada de um homem jovem e que tem de comunicar a notícia à família e partilhar da sua dor; e o ser ontem a criança com capacidades privilegiadas, já capaz de se sentir tocada pela beleza das coisas, perfila-se o curto espaço duma semi-vida.

Tempo em que foi preciso crescer, amadurecer, amar, sofrer, escolher e fazer opções e, durante o qual, um ser se fracturou conscientemente em duas metades, aparentemente contraditórias e em conflito.Ser-se sempre o que os outros querem que sejamos; ser-se constantemente disponível, atencioso, tecnicista, virtuoso, útil, generoso, apagado, presente, sem história e sem passado. Aquele que é incansável, inesgotável e cuja vida, sentimentos e desejos não precisamos conhecer…

Negarmos em nós a nossa verdade, o nosso caminho, a nossa identidade, quando o que mais desejamos é ser completos, realizados, criativos e amados.

Reunirmos num só os pedaços que a vida em nós separou - eis a angústia essencial, o objectivo que todos perseguimos antes que a luz se extinga…

Acredito que a vida é circular e que a humildade da nossa viagem é sempre no sentido da aproximação com o passado, a infância e as nossas raízes. Voltamos sempre às camadas mais profundamente estratificadas da nossa memória, aos nossos primeiros afectos, à nossa primitiva e incorrupta autenticidade e ao estado mais redutor e honesto de simplicidade.

Vãs todas as glórias, tudo o que fomos e tudo aquilo que poderíamos ter sido e não quisemos. Ter sido ave e ter bebido o mar dum trago ao sol poente, no longe mais longe que o olhar consente; ter sido aurora e eternamente acordado num nó cego de corpos entrelaçados; ter sido quimera, cometa, templo, silêncio e espaço; ter sido abraço, companhia e permanência; ter sido ausência, distância e egoísmo; julgar ter sido tudo e não ter sido nada.

Porque o que persiste, para além da nossa morte, quando tudo já é noite e degredo e o ser não faz qualquer sentido, é o amor, a memória, a arte, a música, a escrita, a pintura, o ferro, a pedra e o bronze…

Por um breve lapso de eternidade, apenas…

Até que o esquecimento, a erosão, a tempestade, o fogo, a guerra, o terramoto, o cataclismo, varram tudo da face da terra e a pó e a nada tudo reduzam…

E de nós, nem um átomo de cinza e de memória subsista.

Paulo Martins

2009.04.17

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